Quando me pediram para escrever sobre esta exposição, dei por mim dividida entre a falta de palavras com que começar o texto e, ao mesmo tempo, a certeza de que o silêncio não é um lugar onde se possa permanecer — porque, como li nos relatos de John Berger, há um silêncio que é “pior do que as balas”[2]. E por isso como falar de uma exposição que ecoa sofrimento e guerra e morte? Como falar de imagens quando a realidade que retratam é indescritível? Foi o meu próprio sentido de justiça, e a minha crença na equidade e na proteção das culturas e da vida humana, que me permitiram seguir em frente, ainda que ciente do meu lugar privilegiado enquanto europeia.
Tive dificuldade em encontrar palavras que compreendessem a brutalidade infligida a um povo e, pungentemente, o súbito assassínio de Fatma Hassona — uma das artistas em exposição — logo após a inauguração. Isto significa que os meus modos de olhar as imagens não poderiam ser enquadrados por muito do que aprendi sobre modos de ver, ainda que o objetivo dessa aprendizagem seja também desmontar as tradições mais estabelecidas do olhar ocidental. Tenho, além disso, de reconhecer que os bem-intencionados discursos com um cunho pós-colonial também me deixaram sem chão — porque, declaradamente, não conseguiram (ainda não conseguem) ter um impacto real na sociedade. Este texto não procurará aplacar este reconhecimento, mas pretende contribuir para amplificar o empenho em não perder a esperança perante um mundo cínico. Ou, talvez, simplesmente possa ajudar a compreender os contextos onde se originam as imagens em Palestine Here and There, e tentar conectá-las à nossa realidade.
Queria (esperava) conseguir olhar para as fotografias e filmes da exposição com algum controlo sobre o estado de comoção e perplexidade em que eu, e toda a gente envolvida, ficámos após a notícia do ataque aéreo israelita que matou Fatma Hassona e a sua família. Esperei, por isso, algumas semanas. Sabia que este não seria um texto sobre a exposição nos termos habituais dos media artísticos, avançando uma crítica e um enquadramento histórico das obras e das carreiras dos artistas. Ainda assim, o facto de as fotografias e os filmes se encontrarem numa galeria de arte significa que estão inseridos num espaço a partir do qual essa amplificação pode acontecer, e a própria Ahlam Shibli, com quem me encontrei para tomar um chá alguns dias antes da inauguração, tranquilizou-me quanto a isso. Por isso começo este texto com esse encontro — porque as regras para escrever sobre uma exposição não se aplicam aqui da mesma forma.
Ahlam Shibli teve o seu trabalho fotográfico e em vídeo amplamente exposto em importantes bienais de museus internacionais. Com uma estética documental, Shibli denuncia políticas opressivas no mundo contemporâneo, e em particular no seu país de origem. Queria me encontrar com ela, não para uma entrevista, mas para uma conversa informal. Paula Parente Pinto, curadora da exposição, tornou o encontro possível. Lembro-me de sentir uma estranha impressão de paz ao atravessar a relva em direção ao estúdio de Performing the Archive. Sabia que era uma paz valiosa. Não queria tomá-la por garantida. Assim, procurei pôr o privilégio de uma caminhada tranquila numa tarde de sol ao serviço de alguma forma de solidariedade. Para mim, a surpresa mais impressionante daquela conversa foi o profundo otimismo que Ahlam transmite. Mantém-se convicta de que a arte, e a sua circulação através do sistema artístico, fazem diferença para o destino do seu povo. Acredita na coexistência entre israelitas e palestinianos, irradia resistência e esperança.
Ahlam estendeu o convite para expor a um grupo de cinco artistas, permitindo assim que as suas vozes cheguem também até nós — de forma, como refere Paula Parente Pinto no texto da exposição, a “evitar uma leitura única e únivoca (…) um exemplo do valor da ação na esfera cultural.” São eles Aref Massalha, Fatma Hassona, Mohamed Harb, Monther Jawabreh, e Rehaf Al Batniji, de quem falarei mais adiante.
Falar da fotografia como prova documental parece inteiramente adequado a esta exposição. Não há lugar a posturas preconceituosas em relação à noção de evidência associada à fotografia — em particular à fotografia documental na tradição ocidental, pelo menos a partir de meados do século XX — porque estas imagens falam de uma verdade muito específica. É preciso compreendê-las fora da lógica habitual de circulação de imagens nos media (e, em particular, nos media artísticos). E se a fotografia documental pretende ser um registo do passado, ao olhar para as fotografias e vídeos na exposição dei por mim a pensar constantemente no presente: os escombros que certamente já tomaram conta de uma dada esquina, um edifício que entretanto pode já ter desabado, as crianças que talvez já não sejam… e… onde estará Madeleine agora?
Madeleine é uma rapariga palestiniana que, desafiando as convenções sociais, decidiu enveredar pela vida de pescadora, como forma de sustentar a família depois de o pai ter ficado ferido num ataque da patrulha marítima israelita ao seu barco. O filme Broken Dreams (2015), de Mohamed Harb, oferece-nos várias perspetivas sobre uma sociedade oprimida, e opressiva nos seus próprios termos. Desde a violência gratuita de potentes jatos de água que perturbam o dia de trabalho de um barco de pesca, ao lamento de Madeleine sobre o peso da sua roupa tradicional, encarchada em água salgada, o que poderia ter ditado a sua morte quando o seu barco virou. A origem mais imediata da violência é a mesma, mas a sua posição enquanto mulher numa profissão masculina acrescenta um nível assinalável de coragem, que acaba por motivar a aceitação por parte dos homens da comunidade.
Mohamed Harb apresenta também um conjunto de fotografias na exposição, The Artist’s Family and Studio (2023-25), que testemunham a destruição do seu estúdio pelos bombardeamentos israelitas. Vemos algumas pinturas ainda encostadas à parede, marcas de uma interrupção a partir da qual não há certezas de se poder avançar para o futuro. Noutras fotografias, vemos o presente: os seus filhos a pintar, abrigados pelas tendas onde a família vive atualmente. Essa frágil intimidade é, todavia, prova de uma força que aponta à possibilidade de um futuro melhor.
Rehf Al Batniji, fotógrafa autodidata e artista visual que vive na cidade de Gaza e conta com uma carreira internacional, registou ao longo de 2023, com o seu telemóvel, momentos simples da vida quotidiana da sua família. Esses registos são apresentados sob o título sugestivo These Are Not Images. Há um pano de fundo de guerra que se torna percetível no silêncio das imagens, um vislumbre de momentos e gestos pequenos, mas significativos, que o uso da cor acentua. E há um desenho como imagem. É um desenho fotografado que alude à fragilidade dos registos nas condições de vida em Gaza. Que documentos sobreviverão para testemunhar uma cultura e o modo de vida de um povo?
Aref Massalha é enfermeiro especialista em Jerusalém. As suas fotografias Floating in a Toxic Space são um retrato marcante da luta pelo cuidado numa unidade de cuidados intensivos. Realizadas durante o período da COVID, inicialmente em formato analógico, a utilização do preto e branco amplifica uma resiliência silenciosa — em contraste com a reverberação da guerra e da destruição que assolam o território palestiniano. Os corpos retratados nas fotografias estão suspensos, privados de movimento, tal como o povo palestiniano no seu território.
Monther Jawabreh recorre à montagem para criar situações fictícias. Estas são, talvez, as obras mais simbólicas da exposição. As imagens combinam fotografia e colagem digital. Na sua tentativa de representar a ausência, falam de vestígios, de morte e de resistência.
Ao longo da sua carreira internacional, Ahlam Shibli tem explorado as políticas de representação documental, em particular as noções de casa e de pertença, através do vídeo e da fotografia. Além de um slide show com o título de Staring, desenvolvido a partir de trabalhos anteriores de 2016-17, a artista apresenta Nine Days in Wahat Al-Salam (2010), um registo de encontros mediados entre jovens palestinianos e israelitas. O meu primeiro pensamento, ainda antes de o filme começar, foi: em que língua falará o grupo? E, de facto, a pergunta abriu o debate sublinhando a preponderância de uma das línguas sobre a outra: o árabe não era compreendido por todos. Isolados na sua língua, os palestinianos veem-se forçados a fazer a travessia e a falar hebraico. Isto não é um detalhe, é o processo de dominação a tornar-se visível. A condição dual do território é constantemente evidente, mas a singularidade das identidades dos participantes deixa entrever um sinal de progresso face ao preconceito que todos têm de enfrentar nas suas culturas e contextos. Torna-se claro que, quando a identidade se afunda na questão da lealdade — em vez de florescer na coexistência — as identidades individuais ficam presas a princípios rígidos que não correspondem às suas aspirações interiores.[3] Fica uma pergunta no ar: será assim tão terrível a ideia de um Estado binacional? E, a partir do comentário de um participante sobre o ataque de 2003, voltamos ao presente. Ele diz, e cito livremente, que não quer rotulá-lo de genocídio porque, se a situação piorar, já não terá outra palavra para o nomear.
É difícil falar de Daily Notes Under Bombing, de Fatma Hassona, porque as imagens confrontam-nos com uma vulnerabilidade que sublinha o desaparecimento da artista. A sua consciência da disseminação do luto e da possibilidade de morrer contrasta com o forte compromisso com a documentação do quotidiano em Gaza sob cerco. Foi morta com a família, pouco depois do anúncio da sua participação num documentário em Cannes. Reproduzo a sua voz nas redes sociais: “Se eu morrer, quero uma morte ruidosa.” Na sua luta contra a destruição de provas, deixou-nos “imagens intemporais que não podem ser enterradas pelo tempo ou pelo lugar.” Hassona esteve também envolvida em atividades educativas e em programas de apoio à voz das mulheres, e o seu desaparecimento continua a ecoar pelo mundo.
Estes artistas desenvolvem frequentemente uma prática alargada e interdisciplinar, combinando os papéis de fotógrafos documentais, pintores ou, de forma mais geral, criadores de imagens, com uma função educativa e um compromisso social. Na economia ocidental, flexível e em constante transformação, este multitasking é muitas vezes interpretado como uma resposta às pressões do capitalismo. Mas, numa região afetada pela guerra, a pressão é de uma outra ordem. Resulta não só da falta de apoio às artes, mas sobretudo da necessidade de combater a supressão de uma cultura.
O espaço da arte tem de ser um espaço de liberdade. John Berger diz, sobre a liberdade, que esta não existe sem ação. Nenhuma outra frase poderia ser tão adequada à realidade do mundo atual. Parafraseando o autor, o desejo de liberdade não é o desejo de possuir alguma coisa, mas a tentativa de mudar as condições em que esse algo — a liberdade — não tem existência real. Em particular assim é para os palestinianos, para quem uma passagem pela prisão ou o impedimento constante de circular livremente faz parte da vida quotidiana. O anseio por uma vida normal torna-se uma chama efémera no horizonte da sobrevivência imediata, mas também fomenta a resiliência e é alimentado pela coragem. Creio que não é uma questão de “tomar partido”, mas sim de dignidade, porque o valor da vida humana está acima de qualquer sectarismo. Isto é sobre o povo palestiniano, mas não só, o que está em causa é uma questão de humanidade.
Ao mostrar estas obras na sua galeria, a Rampa insere-as numa conversa mais ampla sobre a influência da fotografia nos discursos críticos contemporâneos, e sobre a motivação (e a realidade) destes fotógrafos ao criarem as suas imagens. Não posso esperar, com este pequeno texto, contribuir para interrogar a função contemporânea da fotografia documental. Mas, à luz das condições específicas em que estas imagens foram produzidas, pergunto: poderemos fundar modelos alternativos de ver, documentar e compreender os acontecimentos e condições que moldam a realidade palestiniana e, por extensão, as nossas instáveis realidades globais?
Esta arte não é simbólica, porque, através da sua relação com o conflito, dos seus modos de representação e da referência a condições históricas, procura ser instrumental — algo que a tradição ocidental, embora possa tentar assimilar, não aceita verdadeiramente, pelo menos sem uma concessão à ficção. É irrelevante que estas práticas operem no espaço estetizado da arte; o que realmente importa são as revelações que trazem à luz, perante a sofisticação e os recursos no exercício do poder de um Estado empenhado em desmantelar os registos de uma cultura e em suprimir aqueles que testemunham essa supressão, como Fatma Hassona. Mas, e tal como a minha formação me ensinou que esse espaço estetizado reivindica a sua própria crítica, regressei a Is it art?, The Spirit of Art as Activism (1995)[4] de Nina Felshin, para confirmar a persistente ineficácia da arte ativista e tentar enquadrar as consequências desta exposição num contexto crítico mais amplo de ativismo, a fim de reforçar a agência destes artistas [5].
Houve duas razões para aquela ineficácia. Primeiro, a arte ativista estava voltada para si mesma, uma vez que a maioria dessas práticas procurou abordar questões problemáticas e importantes na sociedade, mas raramente se debruçou sobre realidades fora do âmbito ocidental. Depois, e de algum modo, viu-se rapidamente institucionalizada ao longo da década seguinte. Hoje em dia, já não se trata de destronar o formalismo, como nos anos 70 e 80, nem de estabelecer uma prática em contraprocesso face a uma qualquer corrente estética anterior. Atualmente, o reconhecimento do desequilíbrio das vozes e dos meios de representação numa sociedade que manipula a circulação da informação, tornou o mundo da arte consciente da importância de identificar e enfrentar as ameaças à liberdade e à dignidade humana. E essa tem sido, há algum tempo, uma força motriz no mundo da arte.
Nina Felshin escreveu então que a arte ativista, enquanto “forma cultural, é o culminar de um impulso democrático para dar voz e visibilidade aos marginalizados e para conectar a arte a um público mais vasto.”[6] Mas este é um processo que precisa de ser constantemente reavivado porque, como declarou Okwi Enwezor, a democracia é um processo aberto, “um projeto em constante reinvenção”. Perante uma sociedade dominada maioritariamente por oligarcas para quem os âmbitos da educação, da cultura e da arte representam uma ameaça, a resistência torna-se a única forma de não ceder — porque a manipulação das narrativas (dentro de agendas movidas por interesses económicos, políticos, religiosos ou identitários) por parte daqueles que procuram expandir o seu poder também resistirá e procurará prevalecer. A identidade é, muitas vezes, forçada a ser algo diferente do que seria fora da pressão de tais agendas.
A arte ativista incorporou, ao longo do tempo, uma interseção de posições estéticas e sociopolíticas que procuravam interrogar, desestabilizar ou reconfigurar as fronteiras e hierarquias convencionais impostas pelas narrativas culturais e estruturas de poder dominantes. Mas as posições de poder com que lidamos no caso da violência do regime opressivo israelita na Palestina são de uma ordem muito diferente, porque atuam consistentemente sobre todo o modo de vida de um povo. No mundo de hoje, não há espaço para a neutralidade, nem para encontrar desculpas para a violência e a dominação. O pós-colonialismo pareceu, ao longo das últimas décadas, oferecer um ponto de partida para falar de injustiças históricas, mas num mundo cada vez mais militarizado demasiados processos coloniais de dominação e opressão estão em curso.
E estão em curso no âmbito de um generalizado modo público destituído de poder que precisa de ser contrariado. Demasiadas agendas procuram enquadrar acontecimentos injustificáveis através de marcadores identitários e culturais. Escrevi, há tempos, que a identidade não pode ser um meio para enquadrar e congelar processos culturais — muito pelo contrário, são os processos culturais que fazem avançar as identidades. Seguindo esta ideia, afirmo agora que a identidade (religiosa, cultural, territorial…) não pode servir de justificação para a violência, e que uma violência exercida sobre a cultura de um povo, o seu modo de vida e as suas práticas quotidianas, forçará a sua identidade a uma progressiva resistência.
Termino este texto com uma pergunta: se a arte é onde a nossa[7] fragilidade se expõe, não será na história que temos de encontrar a nossa humanidade?