Conde de Ferreira: uma filantropia alimentada pela infâmia
Conde de Ferreira: uma filantropia alimentada pela infâmia
Luís Miguel Queirós
28 de Dezembro de 2023

No espaço Rampa, no Porto, a exposição Joaquim, o Conde de Ferreira e seu Legado reúne vários olhares sobre a figura do esclavagista a quem o país deve as bases do seu ensino primário.

© Público, Paulo Pimenta
Conde de Ferreira


Organizada pelo designer e curador Nuno Coelho, a exposição Joaquim, o Conde de Ferreira e seu Legado, que permanecerá no espaço Rampa, no Porto, até 17 de Fevereiro, é o segundo momento de um projecto, de natureza simultaneamente artística e científica, que pretende revelar e problematizar o percurso de Joaquim Ferreira dos Santos, vulgo Conde de Ferreira, ainda hoje bastante mais conhecido em Portugal pela sua filantropia post-mortem – mandou edificar um pioneiro hospital psiquiátrico e 120 escolas que foram decisivas para a consolidação do ensino primário no país – do que pela actividade de décadas no tráfico de escravos, fonte da sua considerável riqueza e da sua posterior (e sobretudo póstuma) beneficência.


Investigador do Centro de Estudos Interdisciplinares (CEIS20) da Universidade de Coimbra, que financia este projecto, também apoiado pela Direcção-Geral das Artes, Nuno Coelho confessa que ele próprio conhecia mal essa história menos contada do Conde de Ferreira, para a qual foi alertado no âmbito de um projecto colectivo que procurava um tópico relacionado com o legado colonial no Porto. O tema acabou por ser preterido, mas o curador já estava demasiado interessado na história do filantropo esclavagista para a conseguir largar. Nos últimos anos, pôde investigar os arquivos da Santa Casa da Misericórdia do Porto, instituição à qual foi confiada a gestão da herança do conde, andou pelo Brasil a seguir o rasto dos seus negócios e fazendas, e continua a percorrer as 120 terras portuguesas onde foram erguidas as escolas que este financiou.


Mesmo descontando os anos em que foi negreiro por conta de outrem, e considerando apenas o período em que já se estabelecera por conta própria, Joaquim Ferreira dos Santos foi responsável por traficar dez mil pessoas. Um número brutal, mas que, ainda assim, lembra Nuno Coelho, representa apenas 0,17% dos 5.860.000 escravos que Portugal traficou. Ora, o facto de a riqueza acumulada pelo Conde de Ferreira ter bastado para deixar um rasto tão considerável no país, em património edificado, mas também, por exemplo, no desenvolvimento do ensino ou da saúde mental, levou o curador a perguntar-se qual terá sido o destino do dinheiro gerado pelo tráfico dos restantes 99,83%.


Uma das virtualidades deste estudo de caso multidisciplinar em torno do Conde de Ferreira é permitir estabelecer metodologias que poderão eventualmente vir a ser aplicadas a outras figuras.


O primeiro momento público deste projecto decorreu em Março passado, no Instituto (uma associação cultural portuense de perfil muito semelhante ao da Rampa), com um conjunto de comunicações então apresentadas por Nuno Coelho, pela historiadora brasileira Aline Biase Albuquerque (autora de uma tese sobre o negociante de escravos Ângelo Carneiro, visconde de Loures, que foi sócio do Conde de Ferreira e teve um percurso muito semelhante ao dele) e ainda pelo sociólogo Pedro Varela, que tem investigado o papel desempenhado pelas fortunas oriundas do tráfico negreiro na criação do sistema bancário em Portugal.


Estas conferências integrarão um livro a ser lançado em data ainda a definir, e que incluirá vários outros textos, além de funcionar como um catálogo da exposição agora inaugurada.


Um negreiro pouco arrependido


Descendo a rampa que dá acesso à exposição, e que deu o nome a este espaço expositivo criado num velho armazém portuense da zona do Bolhão, a primeira peça que o visitante vê é a reactualização de uma obra em que Paulo Pinto, artista e performer não-binário, manipula a primeira página de um encomiástico artigo que o semanário ilustrado Archivo Pittoresco dedicou em 1867 ao filantropo, que morrera no ano anterior. Cobrindo partes escolhidas do texto com açúcar – alusão às plantações de açúcar mantidas pelo trabalho escravo –, Paulo Pinto deixa à vista uma nova narrativa, na qual, por exemplo, o título Conde de Ferreira, que legendava uma imagem do dito, é transformada, por supressão de algumas letras, na expressão “onde errei”.


Intitulada Adoçar a Alma para o Inferno, esta peça abria um ciclo cujo segundo andamento, igualmente recuperado nesta exposição, recria uma performance que o artista realizou no cemitério de Agramonte, e que consistiu em recobrir de açúcar um painel de azulejos que exalta, junto ao jazigo do Conde de Ferreira, as virtudes do falecido.


Mas a mais célebre peça deste conjunto é Adoçar a Alma para o Inferno III, co-realizada com Dori Nigro, e que ficou a dever a sua visibilidade mediática à censura de que foi alvo quando esteve exposta, em Maio, no Panóptico do Hospital Conde de Ferreira, no âmbito da Bienal de Fotografia do Porto. A peça é composta de um açucareiro com o retrato do patrono do hospital, rodeado de três espelhos; dois deles mostram inscrições com factos e números respeitantes às suas práticas negreiras, enquanto o terceiro interpela directamente os visitantes, questionando “quantas pessoas escravizadas valem um hospital psiquiátrico”, ou “120 escolas”, ou “os títulos de nobre e benfeitor”.


O administrador do hospital, gerido pela Misericórdia do Porto, argumentou então que a obra podia perturbar os doentes e, em plena inauguração, ordenou que esta fosse removida ou, numa alternativa que veio a concretizar-se nesse mesmo dia, que a porta da cela onde estava exposta fosse selada até ao final da mostra. Nuno Coelho não apenas reintegrou agora esta peça na exposição da Rampa, como a complementou com um testemunho desse acto de censura: um vídeo gravado na ocasião, no qual se vê um funcionário do hospital, munido de um berbequim, a fixar uma tábua ao chão para garantir que a porta permanecia fechada.


Dori Nigro, artista natural do estado de Pernambuco que forma uma dupla artística com o também brasileiro Paulo Pinto, assina a obra seguinte, uma vídeo-performance poética e política, na qual usa a sua voz e o seu corpo, pintado de dourado, para abordar o conceito de “banzo”, que designa o estado de espírito dos africanos levados para longe da sua terra pelos traficantes de escravos. “É utilizado pela primeira vez num documento do século XVII por uma pessoa branca que vai num barco e tenta descrever o estado de alienação, a nostalgia extrema, que observa na cara das pessoas que estão a ser traficadas”, explica Nuno Coelho.


Do artista angolano João Ana, pode ver-se Quem É Cego Não Pode Decidir de Cores, um filme em que o artista ouve quatro afrodescendentes radicados em Portugal, e que parte de um processo judicial de 1842, conservado no Arquivo Nacional do Rio de Janeiro. O respectivo réu, João Moreira de Artiga, é um negro que, ao visitar amigos numa das fazendas do Conde Ferreira, se vê preso e acusado de ser um escravo fugido. O empresário português, que já estava então em Portugal há dez anos, viria a contratar um representante para procurar que o tribunal lhe reconhecesse o direito de propriedade sobre o réu, o que, nota Nuno Coelho, sugere que não se arrependera do seu passado esclavagista.


O título do filme é a transcrição de uma frase do processo, proferida pelo curador do réu, Manoel Moreira de Souza Meireles, quando é criticado por estar a defender uma pessoa negra. “Quem é cego não pode decidir de cores”, responde, numa farpa que não sabemos se teria como destinatário o Conde de Ferreira ou o seu representante em tribunal.


Debater a censura


A primeira das duas salas da exposição termina com As Entranhas e o Zumbido, um surpreendente conjunto de dez peças de barro vidrado realizadas em co-autoria por António Ramalho, bisneto de Rosa Ramalho (e filho de Júlia Ramalho), e a designer e investigadora Bárbara Neves Alves. Esta última propôs dez conceitos que considera “centrais para a discussão do passado colonial português”, como O Trauma, A Negação, O Racismo, O Silêncio ou A Retórica, tendo realizado para cada um deles desenhos a partir dos quais o ceramista construiu as peças.


Numa pequena sala anexa, Franscica Calisto montou um site interactivo apenas navegável no local, que inclui uma cronologia do Conde de Ferreira, um inventário dos locais onde se encontram os edifícios construídos em cumprimento das suas disposições testamentárias, e ainda um conjunto de gráficos que ilustram as origens e os destinos das pessoas que traficava, trazidas de Angola, mas também de Moçambique ou de Badagri, na actual Nigéria, e descarregadas sobretudo nos portos do Rio de Janeiro e do Recife.


Ao fotógrafo de arquitectura Ivo Tavares, o curador encomendou um trabalho sobre as escolas Conde de Ferreira, mas pedindo-lhe que não salientasse, como costuma fazer, a beleza dos edifícios, e que tentasse mostrá-las nos seus actuais contextos; nalgumas das imagens expostas vemo-los, portanto, em diálogo com igrejas ou com edifícios de câmaras municipais.


A última obra, do arquitecto Paulo Moreira, também responsável pela já referida associação Instituto, e da arquitecta cabo-verdiana Thaís Freire de Andrade, sua colega de atelier, é composta por dois objectos: uma maqueta das ruínas da antiga escola Conde de Ferreira de Trancoso, da qual só sobreviveram algumas pedras dispersas, e um vídeo que regista uma parte da conversa que os dois arquitectos mantiveram num parque de Trancoso, com Nuno Coelho e outros protagonistas.


No próximo dia 6 de Janeiro, às 16h, o curador conduzirá uma visita guiada à exposição, dando início a um programa paralelo que decorrerá todos os sábados à mesma hora e que incluirá, logo na semana seguinte, a projecção do documentário Debaixo do Tapete (2023), realizado pelos jornalistas Catarina Demony e Carlos A. Costa, a primeira descendente de uma família que teve grande preponderância no tráfico de escravos de Angola, os Matoso de Andrade e Câmara, cuja história o filme recupera.


Destaque ainda para o debate de 27 de Janeiro, Ecos Silenciados: Entre a Memória e a Censura, no qual participarão, entre outros, Paulo Pinto e Dori Nigro, e para a “conversa-debate” Memorializar a escravatura no espaço público português, no sábado seguinte, que partirá do processo de criação, em Lisboa, do Memorial de Homenagem às Pessoas Escravizadas (que continua por concretizar), e terá como convidados Evalina Gomes Dias, da Djass – Associação de Afrodescendentes, a investigadora Marta Lança, editora do portal BUALA, e Paulo Moreira.


Financiador do liberalismo


Nascido em 1782 na freguesia portuense de Campanhã, quinto filho de uma modesta família de lavradores, o futuro Conde de Ferreira teve excepcionalmente acesso à instrução primária, já que o destinavam ao seminário; e talvez o reconhecimento do que ficou a dever a esse privilégio tenha influenciado a sua decisão de deixar em testamento uma quantia de dinheiro expressamente destinada à construção de escolas, sugere Nuno Coelho, que realça o facto de esta medida ter obrigado o país a organizar e legislar um ensino primário que só tinha ainda uma incipiente existência informal.


Aos 18 anos, emigrou para o Brasil, onde trabalhou em empresas que traficavam pessoas, tendo chegado a comandar, ele próprio, alguns dos navios que atravessavam o Atlântico para trocar mercadorias por escravos nas costas de África. Depois montou a sua própria empresa, que possuía dois navios. Tinha também duas fazendas no Rio de Janeiro.


Em 1822, com a independência do Brasil, tornou-se cidadão brasileiro. Uma década mais tarde, em 1832, regressou a Portugal, e Nuno Coelho está convencido de que o fez para fugir de problemas, já que nesse mesmo ano foi acusado de violar a Lei Feijó, do ano anterior, que proibia a importação de escravos (a escravatura propriamente dita continuou a ser legal até 1888, ano de publicação da Lei Áurea).


O facto de ter voltado ao Porto em plena guerra civil, quando a cidade estava cercada pelas tropas miguelistas, é outro argumento para se admitir que este regresso a casa tenha sido ditado pela necessidade. Certo é que se associou aos liberais triunfantes, que financiou generosamente, conseguindo, em troca, ser sucessivamente nomeado barão, visconde e conde de Ferreira.


Durante bastante tempo terá almejado regressar ao Brasil, mas nunca o fez. Hoje é lembrado em 66 praças e ruas portuguesas, assegura Nuno Coelho. A sua estátua mais conhecida, esculpida por Soares dos Reis, tem três metros de altura e está no Museu Nacional Soares dos Reis, no Porto.


Se esta exposição, ao salientar no título o nome próprio Joaquim, já sugere uma intenção de destituir o homem dos títulos e honrarias que lhe foram outorgados, fá-lo não para reescrever a sua história, mas para a completar, procurando mostrá-lo na sua contraditória realidade e tentando avaliar o não menos complexo legado que deixou.

Conde de Ferreira: uma filantropia alimentada pela infâmia
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Pátio do Bolhão 125

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