Desmascarar o lado colonial do Porto, ou “um passado que não passou”
Desmascarar o lado colonial do Porto, ou “um passado que não passou”
Mariana Duarte
December 21, 2019

Na exposição Unearthing Memories, o colectivo de artistas InterStruct reflecte sobre como as narrativas da Primeira Exposição Colonial Portuguesa de 1934 ainda enformam a sociedade portuguesa e o espaço público da cidade do Porto. Para ver na Rampa até 18 de Janeiro.

Frame do vídeo "Mediterrâneo" (2019), de Melissa Rodrigues e Miguel F CORTESIA INTERSTRUCT COLLECTIVE
Frame do vídeo "Mediterrâneo" (2019), de Melissa Rodrigues e Miguel F CORTESIA INTERSTRUCT COLLECTIVE
Vijay Patel, artista e pesquisador ligado ao InterStruct Collective CORTESIA INTERSTRUCT COLLECTIVE
Vijay Patel, artista e pesquisador ligado ao InterStruct Collective CORTESIA INTERSTRUCT COLLECTIVE
Algumas das obras expostas dialogam com materiais que foram produzidos na Exposição Colonial CORTESIA INTERSTRUCT COLLECTIVE
Algumas das obras expostas dialogam com materiais que foram produzidos na Exposição Colonial
"Unearthing Memories" (Desenterrando Memórias) apresenta obras em vários formatos, do vídeo à fotografia, da documentação aos objectos. Na imagem, a série "Escadas", de Odair Monteiro CORTESIA INTERSTRUCT COLLECTIVE
 "Escadas", de Odair Monteiro CORTESIA INTERSTRUCT COLLECTIVE

Em 1934, os Jardins do Palácio de Cristal no Porto foram palco da Primeira Exposição Colonial Portuguesa, organizada pelo regime fascista de Salazar para mostrar, a portugueses e a estrangeiros, os feitos e sucessos do suposto império português. Durante três meses e meio, mulheres, homens e crianças negras seminus foram exibidos e exoticizados como se estivessem num jardim zoológico (“sem negros e sem negras, a Exposição atrairia, afinal, pouca gente”, escreveu-se num jornal da época). Recriaram-se aldeias indígenas, construíram-se estátuas de navegadores e caravelas em miniatura, apresentaram-se várias pinturas de negros escravizados e submetidos às acções de evangelização católica.

Este evento megalómano, verdadeiro desfile de horrores do Estado Novo e caso paradigmático do Portugal racista, colonizador e nacionalista, é o gancho temático de Unearthing Memories (Desenterrando Memórias), exposição concebida e curada pelo InterStruct Collective no espaço Rampa, no Porto, onde fica até 18 de Janeiro. Através dos trabalhos de sete artistas e pesquisadores ligados a este colectivo — Desirée Desmarattes, Isabel Stein, Melissa Rodrigues, Miguel F, Odair Monteiro, Vanessa Fernandes e Vijay Patel —, Unearthing Memories faz a ponte entre o passado e o presente. Torna explícito o modo como as narrativas, os artefactos e o imaginário visual da Primeira Exposição Colonial Portuguesa (e do colonialismo português em geral) ainda sobrevivem na cidade e no país, nas mesmas ou noutras configurações, e sustentam discursos e comportamentos racistas, xenófobos e excludentes na sociedade portuguesa. Mesmo numa altura em que o debate sobre a descolonização do pensamento está na ordem do dia, pouco ou nada se fala sobre a existência desta Exposição Colonial.


Olhar de fronteira


Unearthing Memories acaba por ser o culminar de um trabalho de investigação que foi sendo realizado, individualmente e colectivamente, pelos membros e colaboradores do InterStruct Collective. Criado em finais de 2017, este colectivo reúne artistas e investigadores de várias nacionalidades (brasileira, cabo-verdiana, britânica, alemã…) que residem e trabalham no Porto. Como aponta uma das co-fundadoras, Desirée Desmarattes, quase todos os membros “vêm de países e famílias afectadas pelo colonialismo [português ou outro]”, pelo que “as questões coloniais” presentes no Porto sempre foram um tema de conversa entre o grupo, estando implicadas “na forma como se percepciona e experiência” a cidade.­


“Estamos quase todos nesta fronteira de ser e não ser daqui: trabalhamos e vivemos aqui, somos do Porto agora, mas somos também de outros lugares”, assinala Melissa Rodrigues, co-autora de um dos vídeos exibidos, Mediterrâneo (2019), e que este sábado, às 16h00, apresenta a performance-conferência De Submisso a Político – O Lugar do Corpo Negro na Cultura Visual, como parte do programa paralelo da exposição. Para Melissa, este “olhar de fronteira” traz uma importante dimensão de análise crítica. “Temos uma preocupação, ou uma disponibilidade, para pensar a cidade de forma diferente de quem sempre a habitou. Este olhar curioso de quem chega e tenta perceber porque é que os cafés que frequentamos têm objectos racistas e porque é que eles continuam lá.”

Este debate, assinala, toca a todas e a todos, inclusive às pessoas brancas, apesar de não sofrerem na pele o legado colonial. São “questões estruturais” de uma sociedade, portanto “importam a toda a gente”, diz Isabel Stein, outra das artistas da exposição. “A branquitude vive dos seus privilégios. As pessoas [brancas] até podem ver algo e pensar ‘isto é mau’, mas depois passa. Nós não temos o privilégio de não ver e de não pensar sobre isto porque somos as pessoas directamente afectadas”, nota Melissa Rodrigues, também membra do NARP – Núcleo Anti-Racista do Porto. “Estamos a revisitar, com uma perspectiva crítica, uma exposição que aconteceu há 85 anos mas que ainda nos afecta hoje”, continua a artista e investigadora nascida em Cabo Verde. “As pessoas que foram trazidas para o Palácio de Cristal e estiveram a ser exibidas durante três meses e meio eram pessoas das nossas nacionalidades.”


Unearthing Memories apresenta obras em vários formatos, do vídeo à fotografia, da documentação aos objectos. Algumas delas dialogam com materiais que foram produzidos na Exposição Colonial e que os artistas respigaram da Internet e de arquivos do Porto e de Lisboa, como fotografias, filmagens ou uma publicação de antropologia em que se procura justificar construções racistas e estereotipadas (que ainda persistem) dos corpos negros através da ciência. Apesar de existir um desenterrar de memórias, histórias e artefactos, o que se distingue aqui não é o arquivo mas a forma como a bagagem colonial portuguesa de mais de 500 anos ainda contamina e enforma a contemporaneidade, a sociedade portuguesa e, mais concretamente, a cidade do Porto.

Nesse sentido, o mapa interactivo que está à entrada da exposição é muito claro. Mostra um levantamento de edifícios, objectos, produtos comerciais, lojas (da Casa Oriental ao Pretinho do Japão), cafés (muitos deles com os bonecos “pretinho da sorte”), restaurantes (como o recente Colonial by Studio66) e outros espaços (como o museu e parque temático World of Discoveries, que parece ter sido inspirado directamente na Exposição Colonial do Palácio de Cristal), que “ainda mantêm a memória e o orgulho do passado colonial e a ideia de grandiosidade do império” — uma narrativa nacionalista também muito presente na actual indústria de turismo da cidade, referem Isabel e Melissa. “Temos aqui exposto um folheto com um texto de propaganda à Exposição Colonial que está em português e em inglês. O discurso de 1934 que ali está poderia ser o do World of Discoveries de 2019”, observa Melissa.


Com esta exposição, dinamizada por uma maioria de artistas não brancos (e que não são os nomes de sempre a circular no meio artístico portuense), o InterStruct Collective quer “pôr o dedo numa ferida” ainda aberta. Por isso seleccionaram trabalhos “que vão mais a uma memória directa da Exposição Colonial e outros que já são outras construções e narrativas sobre o que é viver num lugar de fronteira e o que é viver em Portugal hoje: ser considerada ‘a outra’, e de onde é que isso vem”, explica Melissa Rodrigues, referindo-se às obras de Odair Monteiro e Vanessa Fernandes. Como diz Melissa no vídeo realizado com Miguel F, “há um passado que não passou”.


Desmascarar o lado colonial do Porto, ou “um passado que não passou”
Desmascarar o lado colonial do Porto, ou “um passado que não passou”
Desmascarar o lado colonial do Porto, ou “um passado que não passou”

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