Na exposição Unearthing Memories, o colectivo de artistas InterStruct reflecte sobre como as narrativas da Primeira Exposição Colonial Portuguesa de 1934 ainda enformam a sociedade portuguesa e o espaço público da cidade do Porto. Para ver na Rampa até 18 de Janeiro.
Em 1934, os Jardins do Palácio de
Cristal no Porto foram palco da Primeira Exposição Colonial Portuguesa,
organizada pelo regime fascista de Salazar para mostrar, a portugueses e a
estrangeiros, os feitos e sucessos do suposto império português. Durante três
meses e meio, mulheres, homens e crianças negras seminus foram exibidos e
exoticizados como se estivessem num jardim zoológico (“sem negros e sem negras,
a Exposição atrairia, afinal, pouca gente”, escreveu-se num jornal da época).
Recriaram-se aldeias indígenas, construíram-se estátuas de navegadores e
caravelas em miniatura, apresentaram-se várias pinturas de negros escravizados
e submetidos às acções de evangelização católica.
Este evento megalómano, verdadeiro
desfile de horrores do Estado Novo e caso paradigmático do Portugal racista,
colonizador e nacionalista, é o gancho temático de Unearthing Memories
(Desenterrando Memórias), exposição concebida e curada pelo InterStruct
Collective no espaço Rampa, no Porto, onde
fica até 18 de Janeiro. Através dos trabalhos de sete artistas e pesquisadores
ligados a este colectivo — Desirée Desmarattes, Isabel Stein, Melissa
Rodrigues, Miguel F, Odair Monteiro, Vanessa Fernandes e Vijay Patel —, Unearthing
Memories faz a ponte entre o passado e o presente. Torna explícito o
modo como as narrativas, os artefactos e o imaginário visual da Primeira Exposição Colonial Portuguesa (e do colonialismo português em geral) ainda sobrevivem na cidade e
no país, nas mesmas ou noutras configurações, e sustentam discursos e comportamentos racistas, xenófobos e excludentes na
sociedade portuguesa. Mesmo numa altura em que
o debate sobre a descolonização do pensamento está na ordem do dia, pouco ou
nada se fala sobre a existência desta Exposição Colonial.
Olhar de fronteira
Unearthing Memories acaba por ser o culminar de um trabalho de investigação que foi sendo
realizado, individualmente e colectivamente, pelos membros e colaboradores do
InterStruct Collective. Criado em finais de 2017, este colectivo reúne
artistas e investigadores de várias nacionalidades (brasileira, cabo-verdiana,
britânica, alemã…) que residem e trabalham no Porto. Como aponta uma das
co-fundadoras, Desirée Desmarattes, quase todos os membros “vêm de países e famílias afectadas
pelo colonialismo [português ou outro]”,
pelo que “as questões coloniais” presentes no Porto sempre foram um tema de
conversa entre o grupo, estando implicadas “na forma como se percepciona e experiência”
a cidade.
“Estamos quase todos nesta
fronteira de ser e não ser daqui: trabalhamos e vivemos aqui, somos do Porto
agora, mas somos também de outros lugares”, assinala Melissa Rodrigues,
co-autora de um dos vídeos exibidos, Mediterrâneo (2019), e
que este sábado, às 16h00, apresenta a performance-conferência De
Submisso a Político – O Lugar do Corpo Negro na Cultura Visual, como parte
do programa paralelo da exposição. Para Melissa, este “olhar de fronteira” traz
uma importante dimensão de análise crítica. “Temos uma preocupação, ou uma
disponibilidade, para pensar a cidade de forma diferente de quem sempre a habitou.
Este olhar curioso de quem chega e tenta perceber porque é que os cafés que
frequentamos têm objectos racistas e porque é que eles continuam lá.”
Este debate, assinala, toca a todas e a todos, inclusive às pessoas brancas, apesar de não sofrerem na pele o legado colonial. São “questões
estruturais” de uma sociedade, portanto “importam a toda a gente”, diz Isabel
Stein, outra das artistas da exposição. “A branquitude vive dos seus
privilégios. As pessoas [brancas] até podem ver algo e pensar ‘isto é mau’, mas
depois passa. Nós não temos o privilégio de não ver e de não pensar sobre isto
porque somos as pessoas directamente afectadas”, nota Melissa Rodrigues, também
membra do NARP – Núcleo Anti-Racista do Porto. “Estamos a revisitar, com uma
perspectiva crítica, uma exposição que aconteceu há 85 anos mas que ainda nos
afecta hoje”, continua a artista e investigadora nascida em Cabo Verde. “As
pessoas que foram trazidas para o Palácio de Cristal e estiveram a ser exibidas
durante três meses e meio eram pessoas das nossas nacionalidades.”
Unearthing Memories apresenta obras em vários formatos, do vídeo à fotografia, da
documentação aos objectos. Algumas delas dialogam com materiais que foram
produzidos na Exposição Colonial e que os artistas respigaram da Internet e de
arquivos do Porto e de Lisboa, como fotografias, filmagens ou uma publicação de
antropologia em que se procura justificar construções racistas e estereotipadas
(que ainda persistem) dos corpos negros através da ciência. Apesar de existir
um desenterrar de memórias,
histórias e artefactos, o que se distingue
aqui não é o arquivo mas a forma como a bagagem colonial portuguesa de mais de
500 anos ainda contamina e enforma a contemporaneidade, a sociedade portuguesa
e, mais concretamente, a cidade do Porto.
Nesse sentido, o mapa interactivo
que está à entrada da exposição é muito claro. Mostra um levantamento de
edifícios, objectos, produtos comerciais, lojas (da Casa Oriental ao Pretinho
do Japão), cafés (muitos deles com os bonecos “pretinho da sorte”),
restaurantes (como o recente Colonial by Studio66) e outros espaços (como o
museu e parque temático World of Discoveries, que parece ter sido inspirado
directamente na Exposição Colonial do Palácio de Cristal), que “ainda mantêm a
memória e o orgulho do passado colonial e a ideia de grandiosidade do império”
— uma narrativa nacionalista também muito presente na actual indústria de
turismo da cidade, referem Isabel e Melissa. “Temos aqui exposto um folheto com
um texto de propaganda à Exposição Colonial que está em português e em inglês.
O discurso de 1934 que ali está poderia ser o do World of Discoveries de 2019”,
observa Melissa.
Com esta exposição, dinamizada por
uma maioria de artistas não brancos (e que não são os nomes de sempre a
circular no meio artístico portuense), o InterStruct Collective quer “pôr
o dedo numa ferida” ainda aberta. Por isso seleccionaram trabalhos “que vão
mais a uma memória directa da Exposição Colonial e outros que já são outras
construções e narrativas sobre o que é viver num lugar de fronteira e o que é
viver em Portugal hoje: ser considerada ‘a outra’, e de onde é que isso vem”,
explica Melissa Rodrigues, referindo-se às obras de Odair Monteiro e Vanessa
Fernandes. Como diz Melissa no vídeo realizado com Miguel F, “há um passado que
não passou”.